quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Pelos olhos de um visitante.

Em busca da minha saciedade, física e espiritual, andava eu por aquelas terras tão pouco exploradas por meus companheiros. Surpreendentemente, até, a julgar pela incrível beleza do lugar.

Até chegar ao paraíso, o caminho era como outro qualquer. Uma terra chamada Alagoas, cheia de estradas cinzas e sem vida, que os mais desenvolvidos chamam de “asfalto”, à exceção de umas poucas árvores no meio do caminho, que tiveram suas vidas quase inteiramente sugadas pelo sol escaldante.

Mas eu tinha que continuar. Eu sabia que estava no caminho certo, o cheiro que me atraía, apesar de vindo de longe, era bastante expressivo. Eu ia chegar lá e todo o meu esforço valeria a pena.

Enxerguei o primeiro sinal que indicava que eu estava perto. Como meu pai havia dito antes de morrer, o nome da cidadezinha era “Boca da Mata”, um nome justificável pelo enorme túnel de árvores que levava à civilização. Mas eu não queria ver a civilização. Decepcionou-me o fato de que fui recebido na entrada da cidade por uma quantidade exorbitante de lixo depositada em ambos os lados. Franzi o nariz. Eu precisava sentir a presença da flora. Segui viagem.

Foi quando percebi o segundo sinal imprescindível para o meu destino. Quando rapidamente cheguei a uma estradinha de barro quase imperceptível, vi aquele infinito território verde, que margeava o asfalto e camuflava os caminhos. Verde de cana, muita cana. No auge de sua beleza. Florescendo. Animei-me no mesmo segundo. Meu pai estava certo. Era a viagem da minha vida. Continuei, sem perder nenhum detalhe, favorecido pela minha visão aguçada.

Aparentemente, sabia aquele caminho de cor. Meu pai havia passado a vida inteira falando daquele que tinha sido o lugar mais bonito que ele visitara. Como bom aprendiz, segui seus passos e suas instruções.

Mas era muito difícil. O lugar era um labirinto. Mais e mais estradas de barro, todas bastante escondidas por entre as altas plantações de cana. E, realmente, a cana não tinha fim. Hectares e hectares divididos entre diversos donos. E o meu paraíso corria o risco de ser perdido naquele caminho praticamente indecifrável.

Eu não podia desistir. A voz de meu pai martelava na minha cabeça: “Você vai conseguir chegar lá. Vai ver a perfeição materializada na natureza. Você nunca mais vai querer ir embora”, ele sempre dizia.

Até que, depois de horas e horas procurando, exausto e faminto, eis que encontro o trecho final da minha jornada, bem como meu pai descreveu. “Depois de muito vagar, muito duvidar da sua capacidade de chegar ao final, você vai ver a chave do paraíso. Encontrará a tesoura. Ela te dará duas opções de caminho: é o da esquerda que você deve escolher. Depois, siga reto pela estrada de barro, e quando seu campo de visão alcançar 360° de pastos incrivelmente verdes e vibrantes, à sua direita você encontrará a ladeira que te levará ao seu destino. Ao chegar lá, aproveite cada segundo do período mais incrível de sua vida. Lembre de mim.”, gabava-se o velho.

Nervoso com a iminência do meu sucesso, fui descendo a ladeira bastante íngreme, contemplando a beleza do lugar. Claro, havia pessoas, afinal de contas, era uma fazenda. Pequenas casas simples, com paredes brancas e portas e janelas azul-marinho, abrigavam os moradores e intercalavam as plantações que alimentavam as famílias locais. Aquelas casinhas rústicas, percebi, faziam parte das histórias de famílias inteiras, e davam mais vida ao local. Por trás das casinhas, além do horizonte, os pastos seguiam encantadores, tão verdes e brilhantes que me encandeavam os olhos.

Fui descendo. Quando a estrada começava a ficar plana, avistei um riacho à minha direita. O barulho era tão hipnotizante que tive que parar alguns segundos. Aproveitei para beber um pouco d’água, o longo caminho tinha me deixado com sede. Meu corpo pequeno tremia de excitação, estava a um minuto de alcançar meu sonho. Nunca amei tanto meu pai. Ele me proporcionara aquela emoção.

Passei por um portão de madeira, que me levou a um pequeno trecho, onde de um lado encontravam-se mangueiras, de outro, mais uma casa, dessa vez um pouco maior. Deveria ser o homem de confiança do dono da fazenda. Ah, o fazendeiro deveria ter mãos de ferro para comandar e fazer andar aquele lugar. Poucos teriam aquela força. Era muita beleza para um lugar só.

Já estava chegando. Podia ouvir aquele barulho suave, encantador e penetrante da água, bem como meu pai descrevera. Hesitei um pouco. Eu chegara. Diante de mim estava a tão sonhada Fazenda Góes. Respirei fundo, segui.

Meu Deus. Como aquilo era possível? Como um lugar poderia ser daquele jeito, tão inexplicável? Definitivamente, meu pai tinha razão. Aquilo era inimaginável, a coisa mais perfeita que eu já tinha visto e que eu iria ver em toda a minha existência.

Assim que cheguei até a Casa Grande, avistei à minha direita aquela água límpida, caindo despreocupadamente no chão, sendo reaproveitada por um tanque que era cheio de escuros peixes, logo à minha esquerda, atrás das primeiras flores coloridas que avistei. Ah, as flores. Que perfume! Quase não resisti, mas minha ânsia de explorar era grande demais para que eu parasse naquele momento.

A casa, com as mesmas características que as pequenas casinhas ao longo da ladeira, só que bem maior, estava no centro da área, a fim de poder avistar de todos os ângulos aquela beleza sem tamanho.

Continuei meu percurso. Ainda à minha esquerda, do lado direito da casa, estava uma linda cabaninha, coberta com uma espécie de palha escura, que constituía um ótimo lugar para descansar, com suas redes, banquinhos e sofás convidativos. Imaginei que o dono da casa passava horas do seu dia contemplando o seu trabalho.

Atrás da cabaninha, mais grama perfeitamente bem cuidada e vivaz, e uma mini-praça redonda, com mais flores lindas e chamativas, mais banquinhos para conversar e admirar a paisagem. Dali, podia-se ver os horizontes, os pastos, o gado, a natureza infinita.

Por trás da casa havia uma pequena floresta, com espécies mais que variadas de plantas e animais. Mais flores, mais vida, mais sabor. Meu Deus, era incrível! Ao lado da floresta, ainda por trás da casa, mais grama, mais flores. Onde eu ia chegar?

Agora o lado esquerdo da casa. Mais natureza. Mais água, uma flora riquíssima, mais lugares para explorar. Árvores frutíferas eram encontradas em outra pequena floresta que seguia até caminhos indescritíveis. Aquela beleza não tinha fim.

Na frente da casa, além de um muro de barro forrado pela grama mais verde que eu já vira, havia mais uma linda e pequenina cachoeira, derramando aquela água pura. E Ela. Uma imagem feita de gesso de Maria, nossa Mãe, abençoando cada ser vivo daquele lugar. A perfeição fazia sentido, então.

Estava decidido, eu nunca deixaria aquele lugar! Precisava conhecer meus companheiros, então. O dono daquele lugar. Deveria agradecê-lo, mesmo que só em pensamento.

Entrei na casa. A porta da frente dava na sala principal, modesta, confortável, que continha diversos porta-retratos nas paredes, que deveriam ser da família. A rede, peça indispensável para o dono da casa, notei, estava ao meu lado esquerdo, escondida no fundo da parede. À sua frente estavam os sofás, a mesinha de centro e a televisão. Logo em cima do sofá maior, encostado na parede que dividia dois quartos, havia um quadro que retratava um homem de feições fortes, porém surpreendentemente doces. Com certeza, era o senhor da casa. Os dois quartos davam com a porta na sala. A televisão era coletiva.

A casa era um vão só, toda na horizontal. O próximo ambiente era a sala de jantar. A mesa do jantar ficava no centro. Do lado direito, um móvel antigo, rústico. Do lado esquerdo, outro móvel, um pouco mais moderno, cheio de fotos em porta-retratos que ficavam na sua bancada. A parede que continha o móvel, à esquerda, dividia os outros dois quartos, que davam com a porta na sala de estar. Ainda do lado esquerdo, do outro lado da porta do primeiro quarto da segunda sala estava uma cadeira de balanço.

Em seguida, vinha um ambiente onde, provavelmente, a família fazia as refeições diárias. Do lado esquerdo ficava a cozinha, o local mais convidativo da casa para muitos. Um banheiro e a despensa ficavam também naquele ambiente.

Ao sair da cozinha, encontrava-se a área de serviço, com uma vista privilegiada da casa, aquela vista do lado esquerdo, descrita anteriormente por mim. Quem trabalhava naquele lugar tinha sorte!

Enfim, tinha conhecido toda a casa. Faltava saber quem morava ali. Meus companheiros.

Enquanto vagava e aproveitava para cheirar algumas daquelas intensas flores, procurava pelo homem que fazia aquele lugar funcionar, ser a paisagem mais incrível do planeta. Foi quando enxerguei uma mulher, cabelos brancos que denunciavam a idade, dona de um rosto encantador, mascarado pelas rugas intensificadas pelo trabalho ao sol, imaginei. De enxada a tiracolo, suada, mãos na terra, cultivando as plantações. Pela sua dedicação, entendi que aquilo tudo lhe pertencia. Fiquei surpreso. Aquele trabalho era, normalmente, de um homem. E ela gritava: “Diiiiiiiitooooooo! Ô, Ditooooo! Vem cá!”. E lá vinha ele, um jovem cheio de força, e ajudava-a no trabalho árduo.

Assim como Dito, Cícero e Ana eram os outros nomes repetidamente chamados por ela. Continuei meu caminho, alimentando-me, extremamente feliz e curioso com o ambiente incomum. Pensei que aquela senhora não deveria morar sozinha naquela casa grande. Adentrei mais uma vez pela casa à procura de mais alguém, o marido, talvez.

Resolvi entrar nos quartos, a fim de encontrar vestígios de novas pessoas por lá. Os dois primeiros quartos da casa, que eram ligados à sala de televisão, estavam impecavelmente arrumados, sem sinais de habitação. Entretanto, o terceiro quarto, o primeiro da segunda sala com os dois móveis de estilos opostos, estava ocupado.

Entrei, curioso. O quarto era um retângulo pequeno, pouco mobiliado. A janela era bem em frente à porta, e dava uma visão da parte de trás da casa. O quarto tinha um guarda-roupas antigo do lado esquerdo, mais uma cadeira de balanço ao lado do guarda-roupas, um móvel do mesmo estilo logo abaixo da janela, e, do lado direito, a cama encostada na parede. O que me chamou a atenção, principalmente, foi a quantidade de imagens de Jesus, Maria, e de todos os Santos, juntamente com Bíblias e terços. Família bastante religiosa, admirei. O penico logo abaixo da cama e o odor penetrante da urina denunciavam que ali vivia uma pessoa bastante idosa.

Mas eu não precisei decifrar signos para entender isso. Afinal de contas, ela estava lá. Uma linda senhora, bem mais velha do que a que trabalhava lá fora, encurvada e enrugada pelo tempo de vida, sentada à cadeira de balanço, concentrada, de terço na mão. Provavelmente, a mãe da primeira senhora. Estava louco para conhecer melhor aquela família.

Procurei por mais pessoas, talvez o marido da senhora da enxada, seus filhos e netos, quem sabe. Ninguém mais, a não ser por uma linda criança, dos seus 6, 7 anos, brincando alegremente na cachoeira da entrada da casa. Como era linda e vivaz! Magra, de pele morena clara, cabelos cacheados, castanhos e de pontas claras, e os olhos! Ah, os olhos! Eram de um caramelo esverdeado, de um tamanho tão expressivo que chegavam a ser hipnotizantes. Deveria ser o cristal da família. Ela nem notou minha presença. Continuei passeando, então, me admirando.

É, definitivamente não havia uma figura masculina morando ali. Fiquei impressionado com a força daquela mulher. Resolvi tentar conhecê-la melhor, já que ia passar o resto da minha vida ali, como tinha decidido.

Como eu era um ser de sorte! Pouco tempo depois, escutei a senhora de força chamar pela criança: “Natália, venha aqui na sala para eu te contar um pouco da história da nossa família, como você pediu!”. E lá foi aquela linda menina, que eu agora sabia como se chamava. E eu fui junto.

Fiquei perto das flores que ficavam no canto da sala, ao lado do segundo quarto, enquanto as duas deitavam-se confortavelmente na rede. Enquanto eu esperava que a senhora começasse a história, vi ao lado da televisão um porta-retrato que continha uma foto dela mais nova junto com seu nome embaixo, Maria da Paz Rocha Sampaio. Agora eu começava a conhecer melhor aquelas pessoas. Encontrei também um pequeno livro, referente à celebração eucarística dos 100 anos da senhora mais velha, Eurídice. Cem anos. Ao redor de sua foto, os rostos e nomes dos seus filhos estavam estampados. Augusto, Maria Bernadete, Teresinha, Hilda, Maria da Paz, Assis, Antônio e Maria do Amparo. Ao lado dos nomes de Teresinha e Assis, uma cruz indicava seus falecimentos.

E Maria começou.

“Há muitos anos atrás, meu marido, Geraldo, comprou essa fazenda aqui. Nós dois trabalhamos duro para construir tudo isso que você está vendo. Foram anos e anos de dificuldade, mas de uma vida cheia de amor e realizações, e foi aqui onde nós criamos nossas duas filhas: Clarissa e Sílvia.”

“As duas casaram, foram morar em Maceió e construíram suas vidas por lá. Clarissa, a mais velha, teve 4 filhas, 3 de sangue e 1 de coração, e Sílvia teve 1 filho e 1 filha, como você bem sabe. E eu continuei minha vida com meu marido por aqui”.

Natália ouvia curiosa cada palavra que Maria da Paz dizia. Ela continuou.

“Certo dia, Geraldo saiu da fazenda para ir a uma cidade chamada Campo Alegre, junto com seu irmão, Francisco, marido da minha prima Dagmar. Algumas horas depois, recebi a notícia de que tinha havido um acidente, e que eles tinham falecido. Todos os familiares, amigos e moradores da fazenda ficaram muito tristes, arrasados, porque ele era um homem muito bom. Mesmo sofrendo muito com a perda do meu marido, continuei firme e forte aqui na fazenda, sozinha durante muito tempo, com o apoio da nossa família.”

“Minha mãe, sua bisavó Eurídice, morava sozinha em Maceió nessa época, pois tinha ido cuidar do meu avô alguns anos antes de ele falecer. Todos os seus outros 7 filhos eram casados, muitos moravam em outros estados do Brasil.”

“Há cerca de 20 anos, Mamãe foi atropelada e quebrou o fêmur. Como estava incapacitada de se cuidar sozinha, veio morar aqui comigo na fazenda. Mesmo depois de curada, ela não demonstrou vontade de sair daqui, afinal de contas, éramos as duas sozinhas. Por isso, foi acordado entre os irmãos que eu tomaria conta dela. E assim eu faço até hoje.”

O semblante de Maria da Paz era cansado. Triste, não. Arrependido, muito menos. Eu precisava conviver mais com elas para descobrir o que existia por trás daquela história, eu necessitava do conhecimento do dia-a-dia delas.

Muitos dias se passaram, e eu sempre vagando por ali. Comecei a entender a rotina de Maria da Paz. Sempre muito preocupada com Eurídice, pois ela parecia uma criança, só que bastante frágil. Sempre “reinando”, mexendo no que não devia, sempre prestes a cair e se machucar. Fora isso, não havia maiores problemas. Todos os dias, às 9h, no volume mais alto suportado pelo aparelho eletrônico por conta da sua quase total surdez, Eurídice tinha de assistir à missa na televisão, já que não podia se deslocar toda semana para a cidade.

Vez ou outra ela dizia: “Maria, preciso me confessar. Eu vou morrer pecadora!”. E Maria dizia que assim que pudesse a levaria até o padre, e depois virava as costas, ria e murmurava: “Como uma criatura dessas tem pecado?”.

Toda semana, Maria se ausentava da fazenda por uns dias, e descobri que ela ia a Maceió visitar a família e resolver seus problemas. Outras vezes escutava-a ao telefone, conversando com suas filhas e dizendo que não tinha condições de viajar, pois não havia ninguém para cuidar de Eurídice. Nesses momentos, sim, ela ficava triste.

No mais, sentia Maria satisfeita com sua vida na fazenda, feliz por estar em um lugar tão abençoado, provavelmente fazendo o que gostava, a julgar pelo afinco com que o fazia.

Confirmei minhas hipóteses no primeiro Natal que passei com a família, agora a minha família também. Todos reunidos – filhos, netos, bisnetos e tataranetos -, rindo, comemorando, brincando, confraternizando. Naquele lugar, as diferenças não atrapalhavam a harmonia, e os sentimentos bons superavam as negatividades diárias.

E foi assim que eu fui me apaixonando pela família, especialmente por aquela mulher tão forte, tão amorosa e cuidadosa com a vida à sua volta. E eu, um mero beija-flor, com habilidades especiais, é claro, à procura das mais bonitas flores do mundo, acabei ficando por ali, inebriado por aquela aura natural inabalável.

Por Marcela Sampaio.

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